Aqui se faz… aqui se paga

Abdico do meu horário tradicionalmente consagrado à sesta e venho a esta escrivaninha, primeiro, para não perder o “estalo” de inspiração ocorrido pela lembrança de um passado remoto, despertado pela semelhança da conjuntura atual, segundo, por que, de qualquer maneira não dá mais para conciliar o sono.

A lembrança de que trato – e que me exige de súbito assentar nessas linhas – é a memória de um dezembro de mil e novecentos e já faz tempo, de sorte que nem consigo mais fixar a imagem deste cronista ainda criança…

Meu pai também tinha o hábito da sesta vespertina, imagem sagrada que, ao lado do respeito de todos na casa, nascido da recomendação de mamãe para que se guardasse o silêncio naquelas ocasiões, somava-se, de minha parte, uma verdadeira idolatria dado o carinho e a admiração que a imagem de meu pai significava para mim – ainda mais se considerado meu olhar, então pueril. As revistas em quadrinhos que semanalmente eu ganhava dele, eram depois requisitadas para iniciar aquelas “pestanas” diurnas e, invariavelmente, ainda na segunda página, tombavam sobre seu peito acompanhando os movimentos de uma respiração suavemente adormecida. Aditei este parágrafo para demonstrar o carinho e respeito pelo meu pai, já que a mais ninguém eu permitiria tal irreverência com as minhas revistinhas bem guardadas e conservadas num ritual quase sagrado – hoje lamento o dia em que, me julgando adulto, distribuí-as objetivando ultrapassar aquela fase deliciosa de minha infância.

Ocorreu que, naquele Natal, sem desconfiar de uma consequência tão desafortunada, meu pai – travestido de Noel – presenteou-me com um doce e mavioso instrumento musical: uma gaita. Dessas de duas embocaduras e, portanto, bastante sonora.

Logo aos primeiros acordes fui aclamado aos gritos de “bravo!” pela doméstica e familiar platéia. Alçado tão repentinamente à categoria de grande músico, não me fiz de rogado e passei a distribuir, graciosa e ininterruptamente aquilo que eu acreditava fossem as mais belas páginas musicais.

Após o almoço – intervalo acreditado como de pausa natural de minha virtuose musical – meu pai buscou o “berço” para a sesta e, de pronto, percebi, dado os elogios recebidos, que o momento era o mais apropriado para liberar suaves acordes, embalando-lhe o sono: sentei-me num cantinho de parede ao lado da cama, pus as mãos em concha e, no melhor estilo, liberei sabe Deus que belle valse.

Não lembro de sesta mais curta que aquela na “carreira” de meu pai. Também não lembro de tê-lo ouvido resmungar arrependimentos pelo presente (deve tê-lo feito com bastante discrição).

Hoje, após não ter conciliado o sono, pratico a lição então recebida de meu pai e afago carinhosamente a cabecinha de minha filha – já que isto lhe faz bem, como ensina a psicologia – e lhe agradeço pelo arroubo de inspiração que me proporcionou através do inefável som de sua flauta doce (…de quem foi mesmo a ideia desse presente?) que não parou de tocar lá no quarto, nem aqui, ao lado da escrivaninha, durante este relato.

A estória se repete. Continuar seria por demais cansativo para o leitor (e para os meus ouvidos).

Atesto – por experiência própria – o ditado: aqui se faz, aqui se paga.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *